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Como a primeira mulher indígena conquistou uma vaga na Câmara Federal

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Era setembro de 2008. Uma advogada indígena chamava a atenção no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Joênia Batista de Carvalho —ou Joênia Wapichana, como prefere se apresentar, usando o nome de sua etnia— se movia nervosa. Receava a frustração pessoal e a de seus conterrâneos, caso os ministros da Corte lhe negassem o pedido para integrar a defesa de cinco povos que lutavam pela demarcação contínua das terras da Raposa Serra do Sol, em Roraima, no curso de uma ação popular movida pelo Governo do Estado. O nervosismo da advogada praticamente se dissipou com a permissão. Evocou a identidade de seu povo e iniciou um discurso que soou também como desabafo.

Com um par de linhas desenhadas com tinta vermelha no rosto, Joênia começou a falar: “Catorze milhões de reais circulam anualmente na reserva, mas a nossa economia não é contabilizada. Somos caluniados e discriminados dentro de nossa própria terra”. A advogada usava expressões no seu idioma nativo para pedir um basta à violência contra os índios e chegou a emocionar alguns ministros. A sentença favorável à demarcação das terras da Raposa Serra do Sol só veio um ano depois, mas naquele dia Joênia fez história como a primeira indígena a defender oralmente uma causa na mais alta corte jurídica do país.

Uma década depois desse episódio, na noite do último domingo (7), Joênia sentia outra vez aquela mesma sensação de nervosismo. Em uma casa adaptada para funcionar como comitê eleitoral em Boa Vista, acompanhava com cerca de 50 apoiadores a apuração das urnas pelo rádio. Era sua estreia na disputa de uma eleição. Um ano e meio antes, havia se filiado pela primeira vez a um partido político, a Rede Sustentabilidade, por conta de um pedido feito durante a 47ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima por dez comunidades diferentes, que a consideravam uma das principais lideranças com forças para cavar um espaço de representatividade no Congresso Nacional. Até então, só um índio havia conquistado o feito: Mário Juruna (PDT) foi eleito deputado federal em 1982. “Eu senti no domingo a mesma sensação daquele dia no Supremo, me vi outra vez naquela responsabilidade de representar os índios. Pensava o tempo todo: será que vou conseguir?”, conta.

Naquela noite, o clima no comitê era de tensão. Uma pesquisa realizada dois dias antes da eleição indicava que a candidata da Rede estava em 14º lugar para deputada federal, mas Roraima só dispunha de oito vagas para a Câmara. “Foi muito tenso porque, a princípio, os resultados não eram tão favoráveis”, conta a assessora da deputada eleita, Mayra Wapixana. Outra vez Joênia evocou sua identidade indígena. Com as dezenas de apoiadores que a acompanhavam naquele momento, dançou a parixara, um tipo de oração tradicional dos índios roraimenses, para controlar a ansiedade. Já passava das dez horas da noite e 98% das urnas haviam sido apuradas quando veio a certeza: Joênia era oficialmente a primeira mulher indígena eleita deputada federal no Brasil, com 8.434 votos. Não demorou para a notícia estampar os sites de jornais de todo o país. “Foi muito emocionante ver esse reconhecimento. Pedi muito aos nossos ancestrais para que a gente tivesse nosso espaço lá dentro [da Câmara dos Deputados], pra gente ter um direito de resposta garantido”, diz. Na manhã do dia seguinte, a equipe que assessora a advogada encarava a missão de organizar uma frenética agenda pelo volume de pedidos de entrevistas feitos pelos veículos de comunicação. “Essa eleição me deu uma possibilidade real de eu ser de novo uma porta-voz dos indígenas”, acredita a advogada.

Não será uma tarefa fácil. Quando assumir o mandato, em janeiro de 2019, Joênia Wapichana encontrará uma Câmara dos Deputados bastante renovada, mas também mais conservadora. Também é possível que o Brasil tenha um presidente que já se posicionou contra a demarcação de terras para indígenas e quilombolas —uma das principais bandeiras defendidas pela deputada eleita—, já que o candidato Jair Bolsonaro (PSL) disputa o segundo turno fortalecido, após conquistar 48% dos votos válidos no último domingo, 7. Eleita no país mais letal para defensores da terra e do meio ambiente, Joênia tem essas duas bandeiras e o combate à corrupção como principais pontos de atuação. A conjuntura, porém, não a desanima. “Vou tentar usar o meu mandato para requerer e ocupar todos os espaços que a lei me permite. Não é porque sou só uma que não vou conseguir fazer a diferença. Vou para lutar. Conheço as leis e posso usar os meios legais para fazer ouvir os povos indígenas não só de Roraima, mas do Brasil. É este o meu papel. Eu não estou indo para o Congresso brincar”, afirma.

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Atuação nas bases

Natural de uma comunidade indígena localizada a 65 km de Boa Vista chamada Truaru da Cabeceira, Joênia Wapichana não se identifica como política, pelo menos no sentido tradicional da palavra. “Nunca havia entrado para a política nem tinha me filiado a partido político”, afirma. Mas desde os 20 anos de idade —hoje ela tem 43— atua no movimento social diretamente com as comunidades indígenas e se orgulha em dizer que conhece bem as dificuldades do seu povo. Quando era criança, viu os avós serem forçados a aprender português ao começarem a trabalhar nas fazendas próximas de Boa Vista e ouvia com frequência sobre a luta para garantir as terras da reserva. Sua comunidade, uma das nove etnorregiões de atuação do Conselho Indígena de Roraima, havia decidido que ela seria professora, mas a morte da irmã por uma suposta negligência hospitalar a levou a estudar direito na Universidade Federal de Roraima. Em 1997, se tornou a primeira advogada indígena brasileira —um feito do qual só se deu conta quando passou a viajar por outros estados em defesa dos direitos dos índios.

Desde que se formou, Joênia visita regularmente as comunidades da região e atua na defesa dos direitos territoriais e na denúncia de arbitrariedades. Em 2004, chegou a receber o Prêmio Reebok de Direitos Humanos em reconhecimento aos seus esforços. Ano após ano, a atuação nas bases lhe tornou uma liderança fortalecida na região por defender essas causas em entrevistas à imprensa, preencher as lacunas entre as comunidades e os órgãos governamentais e organizar uma série de campanhas para ensinar às pessoas os seus direitos legais. Especialmente por esse trabalho de orientação jurídica, é conhecida como a “Doutora Joênia” por apoiadores, companheiros e eleitores.

“Acompanho há mais de 22 anos a luta indígena, mas ainda não tem uma discussão da política nas comunidades indígenas. Muitas aldeias não têm sequer energia, então é difícil fazer chegar mais informação e debate”, afirma. Nos últimos dois anos, distintas lideranças indígenas de Roraima começaram um movimento maior nas comunidades para buscar representatividade nos espaços tradicionais da política. Foi nesse contexto que Joênia aceitou o desafio de se candidatar. Junto com ela, outros nove índios se filiaram à Rede Sustentabilidade com as bênçãos da então presidenta do partido, Marina Silva, que naquela ocasião ressaltou a candidatura da advogada. As duas já atuaram juntas em distintas ocasiões, inclusive na defesa pela demarcação das terras da Raposa Serra do Sol no STF, em 2008.

“A relação delas é de muito carinho. Marina deu atenção especial à Roraima com a chegada da Joênia ao partido. Ela conseguiu articular a vinda da candidata com a Executiva Nacional e depois trouxe também o vice-presidente Eduardo Jorge”, define o presidente estadual da Rede em Roraima, Marcos Braga, que divide com Joênia o papel de porta-voz do partido. Com a eleição da indígena, ele espera que o partido se fortaleça ainda mais no Estado e amplie os dois atuais diretórios existentes para outros 13 municípios. A própria deputada eleita vem ampliando as perspectivas: “A discussão política ainda é recente nas comunidades indígenas, mas esse é um momento histórico e estamos cientes que temos potencial de ampliar nossa representatividade nas próximas eleições”.

Fonte: EL PAÍS

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