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Crianças e adolescentes que ‘fogem’ da própria família: casos são mais comuns do que você imagina

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Natasha* se viu obrigada a fugir de casa aos 16 anos. Ela havia engravidado do namorado e o próprio pai dissera que, para que ele ajudasse no sustento daquela criança, a filha deveria ficar em casa como se fosse sua própria esposa.

Em outra família, Sara*, de 12 anos, também decidiu fugir de sua casa. Ela contou que se sentia pressionada a seguir valores que eram impostos pelos pais, como por exemplo só sair com os amigos que eram igreja. Ela não concordava e preferiu ir embora.

Os dois nomes são personagens fictícios. Mas a história de ambas as adolescentes é bem real. Os motivos que fizeram essas jovens fugir de suas próprias famílias, considerando que suas casas não eram um “lar”, foram os mesmos: conflitos familiares.

Tanto o caso de Natasha* como o de Sara* aconteceram no Piauí. Foram relatados ao OitoMeia por pessoas que pediram para não ser identificadas nesta reportagem que traz uma realidade que muita gente não consegue enxergar, ou talvez prefira ignorar: jovens que ‘fogem’ da própria família.

Essa realidade é mais comum do que se possa imaginar. Em Teresina, segundo dados obtidos junto ao Conselho Tutelar, pelo menos dois jovens fogem de casa a cada semana. Os números são uma parcial e mostram que foram seis casos do tipo atendidos somente nos últimos 20 dias.

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Os conflitos familiares, valores morais distantes e relacionamentos abusivos entre pais e filhos estão entre os principais motivos que levam os jovens a atravessar a porta de casa, de acordo com a explicação dada ao OitoMeia pela conselheira tutelar e assistente social, Socorro Arraes.

Giovanna Gabriely Belém fugiu de casa e disse que sofria abusos em casa (Foto: Reprodução/ Facebook)

O CASO GIOVANNA GABRIELY

Nos últimos dias um destes episódios ganhou destaque nas redes sociais e na mídia. O desaparecimento de Giovanna Gabriely Belém Oliveira, de 17 anos, escancarou uma relação familiar que, para ela, não existia motivos para ficar na casa dos próprios pais. Ela fugiu no primeiro dia de prova do Enem. Foi localizada dias depois na cidade de União. E desde então a sua saída passou a ser acompanhada pela imprensa por ter se tornado alvo de uma investigação policial contra a própria família.

Ao ser encontrada, Giovana disse que sofria uma série abusos do pai e relatou que não queria voltar para casa. Ela, supostamente, ficou três dias na casa de um homem de 31 anos. O pai da garota, que também é pastor e professor, Gudson Costa, foi à mídia e tentou não dar credibilidade às acusações da filha disse. Afirmou que ela já o havia denunciado e que estaria mentindo. Pastor evangélico, ele chegou a mencionar em entrevista à uma emissora de TV que o “demônio estaria incorporando”em Giovanna. Mais tarde a família chegou a sugerir que a adolescente, de 17 anos, usava drogas e só se relacionava com “maconheiros”.

Valores da família: hoje em dia esta relação parece cada vez mais complicada (Foto: Reprodução)

VALORES E CONFLITOS

A discordância entre valores morais e culturais, como que tipo de roupas usar, qual religião ou oriental sexual seguir, um pedido para ir ao cinema que não foi aceito, invasão de privacidade e exposição pública dos filhos, podem ser fatores que tornam a vida familiar insuportável para crianças e adolescentes. Nesse contexto, ‘fugir’ se torna uma saída para aqueles que experimentaram situações ruins em casa, como a superproteção, muitas vezes abusiva dos pais. Não apenas no formato de violência sexual, mas física ou psicológica. A expectativa de encontrar uma vida menos tumultuada os faz esquecer de qualquer possibilidade de futuro com aqueles que deveriam protegê-la.

Quando a criança ou a adolescente fogem de casa, em um primeiro momento, o Conselho Tutelar é acionado e deve verificar o que aconteceu. Até aí duas possibilidades: um desentendimento entre pais e filhos ou um caso grave, onde a vida da vítima que fugiu pode estar em risco. Na primeira hipótese, o jovem, geralmente, tem um pensamento e a família tem outro. É o que constata ao OitoMeia a conselheira Socorros Arraes. Há realidades familiares onde os pais exigem muitos deveres dos filhos, porém não compreendem que eles também têm direitos.

“Os pais devem entender que da mesma forma que eles têm direitos, o adolescente também têm. E tem o direito de ir ao cinema, de vestir uma determinada roupa que convêm para idade. Essas atritos geram conflitos familiares. São valores que, de repente, provocam esse conflito. A religião, o modo de vestir, a superproteção do pais, que não querem que o filho tenha um convívio social. Isso vem gerando conflitos e provocando essa fuga dos adolescentes, por desentendimento”, apontou. 

Conselheira tutelar e assistente social, Socorro Arraes falou ao OitoMeia (Foto: Paula Sampaio/ Arquivo pessoal)

RELACIONAMENTOS ABUSIVOS ENTRE PAIS FILHOS

O termo relacionamento abusivo é comumente associado às relações amorosas, porém ele também existe nas relações pais e filhos. Em alguns casos essa realidade é obscura e bastante cruel. “[Existem situações onde] há agressões físicas, psicológicas, sexuais, o abandono e negligência”, contou Socorro. Segundo a conselheira tutelar, em uma demanda atendida pelo Conselho Tutelar em Teresina, uma criança foi localizada com indícios de espancamento na última semana. Mas essa violência não se resume apenas a física. Agressões psicológicas de pais e mães também deixam marcas profundas, que levam os filhos a querer escapar daquela realidade. “Esses jovens sofrem agressão física, psicológica e violência domestica com palavras de baixo calão, que ferem”, apontou.

Um outro caso de denúncia contra uma família abusiva que tomou a mídia recentemente foi o de Eva Luana. A jovem de 21 anos que mora no município de Camaçari, na região metropolitana de Salvador (BA), usou as redes sociais para denunciar que ela e a mãe foram violentadas e torturadas durante anos pelo padrasto. Eva relatou em cinco posts no Instagram que o “caos” teve início quando ela ainda tinha 12 anos. Ela contou que a mãe era constantemente vítima do companheiro e que, depois, passou a ser novo alvo da violência dele. Em um dos posts, ela afirma que denunciou, quando tinha 13 anos,  mas que não deu em nada e ela foi obrigada a retirar a queixa por conta de ameaças do suspeito.

“Eu não tive mais vida social. Tudo era uma farsa. Ele nos obrigava a fingir que tínhamos uma família perfeita. As agressões eram verbais, físicas e psicológicas. Entre elas comer muito, em tempo estipulado. Isso aconteceu com uma pizza família, pra comer inteira em 10 minutos. Óbvio que não conseguimos. Também tomar 2 litros de refrigerante nesses 10 minutos. Eu levei socos no rosto, e ele não me deixava me proteger com a mão. Chutes até cair no chão e, de quatro, ele enfiou as pizzas na minha boca, me chamando de animal. Eu vomitei e comi meu próprio vômito. Meu gato comeu um pedaço e lambeu outro, ele me obrigou a comer o que ele havia lambido”, contou Eva Luana em entrevista ao G1, em fevereiro de 2019. 

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REBELDIA OU PEDIDO DE SOCORRO?

A assistente social, que já trabalhou com famílias do Centro de Reiteração Familiar e Incentivo a adoção do Piauí (Cria-PI), Luara Dias, explicou ao OitoMeia que a fuga de casa é uma decisão comum na adolescência. O ser humano nessa fase do desenvolvimento não consegue pensar na solução de problemas a longo prazo. Para o adolescente, aquele conflito familiar nunca terá uma solução e ele não será ajudado por ninguém. Para ele, a forma de resolver aquela dor é fugir da família.

“Na fase da adolescência você não consegue pensar na solução de problemas a longo prazo. É uma característica da adolescência, ele não enxerga o todo. A tendência é achar que aquele conflito não tem uma solução. Então fugir se torna a única solução para aquele adolescente”, afirmou.

Segundo a conselheira Socorro Arraes, existem, sim, uma solução para estes conflitos familiares e acontece através do diálogo. Para ela, as fugas, muitas vezes, são ocasionadas pois os adolescentes não se sentem ouvidos ou acolhidos naquele núcleo familiar. Para os casos onde já é tarde demais para essa abertura, ela explica que o adolescente pode pedir ajuda através do “disque 100” e também pode entrar em contato com o Conselho Tutelar da cidade. Ele será ouvido.

“Na maior parte dos casos, não é rebeldia. Ela parou de aceitar ser tratada como propriedade do pai ou da mãe. O pai tem direitos, mas a criança e adolescente também tem. Um pai não pode entrar no quarto de um filho sem bater na porta antes, por exemplo. Eu não posso entrar no banheiro em que meu filho está tomando banho sem bater antes. Esse tipo de coisa é constrangedor, é imoral. É preciso respeitar, é preciso que seja mútuo. A família tem que mostrar ao filho o caminho que ele deve seguir, mas também deve ouvir a opinião dele de concordar ou discordar, para que juntos cheguem a um denominador comum”, afirmou. 

Família unida: conselheira diz que o afeto é uma forma de fortalecer os laços afetivos e diz que um simples abraço pode salvar (Foto: Reprodução)

O PODER DO ABRAÇO

Para finalizar, a conselheira também insiste no afeto como forma de fortalecer os laços afetivos e pontua confiante: um simples abraço pode salvar uma família.

“Eu pergunto para os pais quem já deu um abraço no filho hoje ou essa semana, por acreditar que um abraço salva vidas. Não adianta eu ter meu filho e não dizer a ele que o amo. Por menor que seja o poder aquisitivo de uma família o abraço é de graça. E aí é onde entra o amor e a compreensão. Desse jeito, ninguém lá fora dirá para esse jovem que a família não gosta dele. Para Socorro, a família deve educar o adolescente e passar valores para ele, mas também deve encontrar uma forma de cumprir essa missão ao mesmo tempo em que comunica ao filho que estará ao lado dele em qualquer tipo de situação.

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*Os nomes das vítimas foram trocados para preservar a identidade dos personagens

 

Por: Paula Sampaio | Oito Meia

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