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Ao tornar vaquejada ilegal, Supremo deixa em pânico quem vive da prática

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Do momento em que o boi vê a porta se abrindo e sai em disparada pela pista de areia até aquele em que é puxado pelo rabo e cai numa faixa demarcada, não se passam nem 15 segundos. Nesse tempo, ele é perseguido por dois vaqueiros, cada um em seu cavalo, correndo emparelhados ao bovino para evitar que ele escape.

A 100 m de distância do ponto de partida, um dos cavaleiros –chamado de “puxador”– derruba o boi segurando-o pelo rabo. Precisa fazê-lo por completo (o animal tem de tirar as quatro patas do chão) e repetir o feito com outros três bois, para se classificar para a final.

Esse é o esporte chamado vaquejada. E, num evento como a 1ª Vaquejada Dom Roxão, que aconteceu em Garanhuns, sertão de Pernambuco, entre 2 e 7 de novembro, esse processo se repete centenas de vezes.

Foram quase mil duplas de vaqueiros correndo alternadamente atrás de mais de 1.200 bois, de modo praticamente ininterrupto –as corridas começavam por volta das 7h só paravam por volta das 5h do dia seguinte.

A torcida misturava homens, mulheres e crianças, com predomínio dos primeiros. Assistia sentada na arquibancada e era praticamente inaudível –predominava a narração do locutor, que apresenta os vaqueiros e descreve as corridas atrás do boi.

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O que se discute atualmente no país é se esse esporte causa sofrimento aos animais. Em 6 de outubro, uma tênue maioria de ministros do Supremo Tribunal Federal entendeu que sim. Por isso, definiu (por 6 votos a 5) que uma lei do Ceará que regulamentava a prática era inconstitucional.

A decisão provocou pânico nas milhares de pessoas –peões, criadores, tratadores, comerciantes etc.– que vivem das cerca de 4.000 vaquejadas que acontecem anualmente no país, segundo dados da Associação Brasileira das Vaquejadas (ABVAQ).

“A prática surgiu da necessidade de pegar o boi no mato e de imobilizá-lo para curar uma bicheira. A forma era puxando pelo rabo para derrubar. Trouxeram isso para a pista, para o público poder assistir”, diz o pernambucano Emanuel Cavalcanti, 50, empresário e criador de cavalos e de bois de vaquejada.
OS EQUIPAMENTOS

OS EQUIPAMENTOS DA VAQUEJADA

A CORRIDA

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  • Antes da saída, vaqueiros cercam a porta de onde virá o boi, para restringir sua área de escape
  • Cada cavalo corre de um lado do boi, imprensando-o
  • O esteireiro pega o rabo do boi e o passa para?o puxador
  • O puxador tem de derrubar o boi, pelo rabo, dentro da faixa demarcada
  • Cada dupla precisa derrubar 4 bois diferentes para ir para a final

Na final, com bois mais pesados (270 a 330 kg), o procedimento se repete

Ele e os demais defensores do esporte argumentam que ele evoluiu muito nos últimos anos, de modo a minimizar o sofrimento dos animais participantes. Criou-se, por exemplo, a obrigação de usar protetores de cauda nos bois e de patas nos cavalos.

“Denunciamos ao Ministério Público qualquer vaquejada que esteja sendo realizada no país e que não use protetores”, diz Leonardo Dias, diretor jurídico da ABVAQ. “Deve haver um colchão de no mínimo 50 cm de areia no local da queda, água e comida 24h para os animais. A gente exige tudo isso e fiscaliza, denunciando ao Ministério Público o que não estiver conforme.”

Tal argumentação não convence os que se opõem à prática. “Não acho possível a realização de uma vaquejada sem sofrimento dos animais”, diz Irvênia Prada, professora da USP e uma das autoras do parecer técnico que embasou a decisão do STF.

“Apetrechos como protetor de cauda, luvas e colchões são utilizados mais para aliviar a consciência dos praticantes ou para vender a imagem de que são cuidadosos.”

No caso do evento de Garanhuns, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre os organizadores e o Ministério Público Estadual. O documento traz uma lista de ações e itens proibidos que dá uma noção de como a vaquejada não regulamentada pode ser violenta: foram vedados luvas de prego, parafusos e objetos cortantes.

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Também é proibido o uso de “equipamentos de choque, perfurocortantes ou que causem qualquer tipo de machucado no animal”. “Na vaquejada normatizada, não há maus tratos. É um procedimento extremamente humanitário”, diz Antônio Travassos, 59, professor de comportamento animal da Universidade Estadual de Alagoas.

Ele atua também como juiz de bem-estar animal nas provas, verificando se os cavalos saem da corrida sangrando ou maltratados. Quando isso acontece, o vaqueiro é desclassificado (12 o foram no evento de Garanhuns). Para quem vive da vaquejada, os animais são considerados atletas e tratados como tal. Têm, por isso, melhor sorte do que os demais.

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“O verdadeiro maltrato é o gado que não tem acesso à vaquejada passar um ano com fome e sede por causa dessa seca do Nordeste. Muitos não resistem”, diz Emanuel Cavalcanti. “Se a vaquejada acabar, ninguém vai poder sustentar seus rebanhos. Se essa boiada for solta na caatinga, passar fome e sede, será que os ativistas que provocaram isso vão lá perfurar poços?”

PREJUÍZOS

A decisão do Supremo Tribunal Federal contrária à lei do Ceará que regulamentava a vaquejada causou efeitos imediatos na atividade. “Mesmo sem o acórdão do STF ter sido publicado, tem juiz e promotor que já estão proibindo.

O Ceará não teve mais vaquejadas desde 6 de outubro, a Bahia não está correndo, em Alagoas tivemos problemas”, diz o empresário Rodrigo Loureiro, 42, membro do Comitê Nacional da Vaquejada. “Pelo menos 25 vaquejadas deixaram de ser realizadas em menos de um mês desde a decisão”, afirma Loureiro.

Vaqueiros protestam contra o fim da vaquejada - Foto: Romário Mendes

Vaqueiros protestam contra o fim da vaquejada – Foto: Romário Mendes

O temor de que a atividade fique proibida em todo o país –como já aconteceu com a farra do boi e a briga de galo, ambas citadas no voto do relator do julgamento, ministro Marco Aurélio Mello– já repercute também na cadeia econômica da vaquejada.

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“Só com essa especulação de que pode acabar, as minhas vendas de potros já pararam. Vendia dez, 12 por mês. Não estou tendo mais receita. Meus funcionários estão preocupados”, diz Emanuel Cavalcanti, 50.


A POLÊMICA

Os principais argumentos da discussão

A FAVOR

  • Hoje há normas e fiscalização; os bois usam protetores de cauda e participam de corridas limitadas
  • Conselhos de veterinária dizem que o esporte pode ser praticado sem maus-tratos e que seu fim teria forte impacto econômico no Nordeste
  • Processo de derrubar o boi faz parte da rotina (para tratamento de doenças)
  • Cavalo usa protetores, e ferimentos geram desclassificação; como o animal é caro, há interesse em preservá-lo
  • Diferentemente das duas práticas proibidas, a vaquejada não tem como objetivo matar o boi

CONTRA

  • Esporte implica “tratamento cruel e desumano aos animais”, segundo a Procuradoria-Geral da República
  • Bois são “enclausurados, açoitados e instigados” para que corram quando se abre o portão da pista
  • Há “lesões traumáticas nos animais, inclusive a possibilidade de a cauda ser arrancada”
  • Cavalos também podem sofrer lesões, segundo estudo, por causa do esforço e dos choques com os bois
  • Prática deveria ser proibida como ocorreu com a briga de galo e a farra do boi, em que também havia maus-tratos

Os defensores da prática pretendem recorrer da decisão do Supremo quando ela for publicada. Além da via jurídica, valem-se da política: menos de um mês após a conclusão do STF, o Senado tornou a prática patrimônio e manifestação cultural.

As associações ligadas à vaquejada buscam agora a aprovação de uma PEC que transforme a atividade em modalidade esportiva, legalizando-a. Há, por fim, uma tentativa de remodelar a imagem da prática, “para mostrar à sociedade que queremos evoluir”, segundo Loureiro.

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Exemplo disso foi a 1ª Vaquejada Dom Roxão, realizada em Garanhuns (PE) no início do mês e divulgada em seu material publicitário como “a evolução da vaquejada”. Ela adotou uma série de normas de proteção animal da Associação Brasileira da Vaquejada (ABVAQ).

Segundo seu organizador, o empresário Erlan Bezerra, 38, o evento custou cerca de R$ 700 mil, incluindo o aluguel do parque, dos bois e a contratação das equipes de veterinários e fiscais. Com entrada franca, atraiu um público circulante estimado em 35 mil pessoas –homens e mulheres de idades variadas; na corrida, a predominância é masculina.

“Nunca havia pensado em fazer vaquejada, sou novo na atividade. Fiz para promover meu haras e meu cavalo [Dom Roxão, bicampeão nacional]”, diz Bezerra. “Como empresário, não ia fazer um evento sem o selo da ABVAQ.”

Sua receita foi de aproximadamente R$ 1,2 milhão, a maior parte dela vinda da venda de “senhas” que os vaqueiros compram para competir –e que custam de R$ 300 a R$ 1.200, dependendo da categoria. A premiação total para os competidores foi de R$ 200 mil. Ao final do evento, a vaquejada lhe rendeu R$ 115 mil.

Fonte: Folha

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