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“Ainda duvidam quando eu digo que sou professora”, diz 1º travesti da UFPI

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Letícia Carolina Pereira do Nascimento tem 29 anos, faz doutorado em Pedagogia na Universidade Federal do Piauí, é professora de três disciplinas na instituição, orienta alunos para o TCC e tem um grupo quinzenal de estudos. Trabalha na UFPI das 8h às 18h, mas tem dia que vai até às 22h. Chega em casa e já começa a planejar as atividades do dia seguinte. Escreve artigos mensalmente para publicar em revistas e eventos, nacionais e internacionais, escreve capítulos de livros… Uma rotina frenética, típica da profissão. Mas, quando ela diz para alguém que é professora da UFPI, o retorno é um olhar de espanto.

“As pessoas duvidam, se espantam quando eu digo que sou professora. Até hoje, duvidam que nós possamos nos graduar, que eu possa ser professora. As pessoas questionam, não conseguem esconder o olhar de espanto, de surpresa. É como se eu não merecesse estar ali, como se a universidade não fosse para mim. Elas entendem a universidade como o lugar da norma”, afirma Letícia, que é a primeira travesti professora universitária do Piauí e, num futuro bem próximo, será a primeira travesti doutora do Estado.

Em entrevista ao Cidadeverde.com, Letícia desenhou o retrato da realidade das travestis, não só no Piauí, mas no Brasil como um todo. Ocupando um espaço privilegiado na sociedade, ela considera que a educação foi sua grande proteção contra a vulnerabilidade social.

“A realidade é que as travestis não concluem nem o ensino fundamental. A idade média para se assumir é entre 12 e 13 anos. Aí muitas de nós somos expulsas pela família, saímos de casa. Se somos expulsas, também abandonamos a escola e não concluir os estudos nos deixa vulneráveis. As travestis vivem nas ruas violências brutais, vivem a aniquilação da vida. Dessa grande vulnerabilidade eu não faço parte, a universidade me protegeu de violências brutais”, pondera.

Letícia ressalta, entretanto, que apesar de não sofrer violência física, a violência simbólica e psicológica nunca deixa de existir. Seja na universidade ou em outros ambientes públicos, há sempre infinitas barreiras a serem quebradas.

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“Toda a vida eu tive que mostrar o dobro, o triplo do que eu sou capaz. As pessoas tinham que ver que eu sou muito competente. Se eu deixasse alguma dúvida, iam ver uma travesti burra. Sempre tive que me destacar mais que todos os outros. A dúvida quanto às minhas competências sempre foram muito impostas, mas, por ocupar este lugar desde sempre, eu não sofro o que as outras sofrem. Eu não vivo em ambientes vulneráveis, vivo dentro da universidade. E não é que lá não exista violência. Existe, mas é de outro tipo. Não é como na rua, é mais um ‘não respeitar’, é brutal, sim, mas em termos simbólicos”, explica a professora.

Outro contexto

Letícia sempre teve uma família que a respeita e sempre se sentiu amada. Agarrou com unhas e dentes todas as oportunidades de estudo que lhe foram apresentadas. Aos 24 anos, terminou o mestrado. Agora, está chegando ao topo da carreira de professora, mas ainda assim, sente medo. Esse medo de causar confusões pelo simples fato de usar o banheiro feminino ou de ser violentada em alguns lugares restringe seus passos e a faz evitar sair sozinha.

“Costumo andar com amigas, amigos. Para me blindar, não pego ônibus, só para viajar, tenho medo de ser vítima. É uma violência psicológica. Não tenho coragem de andar no Centro sozinha. Se eu sentir que é perigoso, não consigo ir, me pego com medo de fazer algumas coisas e ser agredida. Eu posso evitar esses ambientes, mas algumas pessoas não podem”, lamenta ela.

Letícia diz que na universidade usa o banheiro dos funcionários e o das alunas. “No máximo, vejo uma cara de espanto”, conta. Mas, em alguns locais, como as rodoviárias, ela evita ir ao banheiro a todo custo e quando não temo como não ir, acaba usando com muita pressa e receio. “Eu não sei quem está lá. Temo ser expulsa ou ter que ficar me explicando. Às vezes tenho vontade de ir ao banheiro e não vou, prefiro usar o do ônibus que é unissex. É por causa disso que várias travestis desenvolvem problemas urinários, infecções, perda da bexiga. Quando eu uso o banheiro dos shoppings, ainda vejo olhares femininos de estranheza”, completa.

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A tese do doutorado de Letícia retrata os desafios da diversidade sexual dentro das universidades. O tema é “Processos educacionais de travestis negras”. Ela considera que a maior violência sofrida pelas travestis em ambientes não vulneráveis é a de serem questionadas quanto ao fato de serem mulheres.

“As pessoas se confundem no pronome, se atrapalham na linguagem. É uma falha de compreensão, elas não nos entendem como mulheres, porque é forte a educação que elas tiveram. É difícil deixar pra trás toda educação sexista, machista. A gente precisa, o tempo todo, estar corrigindo ou fingindo que está tudo bem. Mas, enxergando pelo outro lado, a pessoa está tentando se ajustar ao modo de entender o mundo, não à linguagem. Chama de professor, de amigo, ou nome que remete à masculinidade. Ela vê traços masculinos e entende que sou homem, não mulher. Essa é uma forma de violência simbólica. Mas na rua, as pessoas entendem que as travestis merecem ser punidas, merecem morrer. Comigo só duvidam”, compara.

Dentro de casa
Letícia nasceu em Parnaíba e foi criada pelos avós maternos, mas teve uma boa relação com a mãe biológica, que morreu há algum tempo. A maior parte de sua vida foi vivida como um homem gay. Ela se assumiu como homossexual aos 18 anos, quando iniciou a graduação.

“Eu era afeminado, mas me identificava como homem gay, mesmo sentindo que sou mulher. Ser mulher é sentir-se mulher e eu sempre me senti assim, mas tinha medo da sociedade. Por mais que o gay, a lésbica e o travesti sofram preconceito, é diferente. Ser travesti é mais perigoso no nosso país. Estamos na ponta da exclusão. É uma violência muito ampliada”, explica.

Aos 27 anos, após o mestrado, ela passou a construir com mais força sua “travestilidade”, sempre tendo o amor e o carinho da família. “Nunca deixei de estudar, trabalhei muito cedo. Minha avó tem muito orgulho de mim, eu aproveitei as oportunidades que me deram. Ter uma família que me ama e respeita é um privilégio. Ter o que comer, ter casa, também é. Se para eu chegar aqui eu enfrentei desafios, imagine quem não tem essa base, como é. A sociedade espera que fracassemos. É estranho e inovador poder ser professora, mas eu faço o que as outras professoras fazem, a estranheza é ver uma travesti fazendo”, declara.

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Letícia considera que a chave da mudança é o processo educativo e critica o movimento da escola sem partido, por entender que se trata de um ataque à pluralidade de ideias dentro das instituições de ensino. “Esse projeto de escola sem partido é a manutenção dos que tem privilégio, dos que não aceitam que possa existir gays, mulheres, travestis, pessoas do candomblé dentro das universidades. Como pedagoga, eu acredito muito no poder da educação para mudar a nossa realidade”, finaliza.

Fonte: Jordana Cury – Cidadeverde.com

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