DESTAQUES
Com aumento da fome, sociedade se mobiliza para atender vulneráveis
No final do mês
“Já ficamos quatro dias sem comer nada. Quando a gente estava lá em Itapeva e decidimos sair do mato e ir para a cidade, procurar alguma coisa para conseguir chegar em São Paulo, ficamos três dias sem comer, só bebendo água. Passar fome é horrível. É uma sensação horrível. É um jeito muito ruim na barriga. Ficamos meio tontos, dá preguiça, dá moleza no corpo. Você não consegue pensar direito. É ruim”, contou Weslley Santos Silva.
Mesmo destino encontrou Yara Angel Andrade Lucas, 20 anos, quando deixou a cidade mineira de Poços de Caldas e chegou à capital paulista. Até então, ela desconhecia a fome. “Depois que vim para cá é que conheci essa situação de rua”, contou à reportagem da Agência Brasil.
“Era difícil porque não conhecia esse fato de pedir as coisas. Não era um hábito meu. E começando a viver na rua, a gente aprende. Quando eu cheguei em São Paulo, eu passei fome, mas depois disso, não mais. É uma sensação horrível [sentir fome]. Você estar com fome e não conseguir pedir ou
“Depois, quando a gente recebe um alimento, é um alívio total porque a barriga doía, sentia dor de cabeça. Fora psicologicamente também porque passei por uma situação que não passava antes, de passar fome, que não passa pela cabeça de ninguém”, afirmou.
A cabeleireira Thais Oliveira Cavalcante, 31 anos, moradora da zona leste paulistana, se esforça para que seus quatro filhos nunca sintam a fome que ela vivenciou na infância. “Como eu já passei por isso, tentei ao máximo evitar que eles passassem também”, destacou.
Ela afirma que a vida ficou mais difícil e o dinheiro mais escasso durante a pandemia de covid-19, quando as pessoas deixaram de procurar o serviço de cabeleireira. O salário do marido era suficiente apenas para pagar o aluguel e despesas da casa que, inclusive, chegaram a ficar atrasadas. “Ele segurou o aluguel. Chegamos até a atrasar alguns [meses]”, contou. Mas os filhos [que tem entre 3 e 13 anos] não deixaram de comer nesse período.
“Dificuldade extrema não [tivemos]. Mas às vezes não conseguia comprar tudo e precisava da ajuda de alguém. Chega a ser humilhante, na verdade. A gente sabe que a gente deveria contar com a ajuda do governo já que a gente paga pra isso também. Só que, infelizmente, nem sempre a gente é ajudado. Então, a sensação é bem ruim, é de humilhação mesmo, de impotência”, destacou.
Wesllysson, Weslley, Yara e Thais tem uma história comum a muitos brasileiros: a experiência com a fome. Embora não estejam
“Há três níveis de insegurança alimentar: a leve, a moderada e a grave. A leve é uma família que tem alimentos, mas ela não tem segurança de que vai
É nesse terceiro nível de insegurança alimentar que se encontram 33 milhões de pessoas
Sociedade mobilizada
Foi por meio de doações e de trabalhos que são desenvolvidos pela sociedade civil que Wesllysson, Weslley, Yara e Thais conseguiram se alimentar no período de maior dificuldade. Os irmãos, por exemplo, ao chegarem em São Paulo famintos, se depararam com um caminhão que fazia uma distribuição de comida à noite para moradores que vivem sob os viadutos na cidade de São Paulo.
“No primeiro dia
Após se alimentarem, eles tiveram forças para caminhar até a Paróquia de São Miguel Arcanjo, na zona leste, onde puderam encontrar uma figura que já conheciam pela televisão: o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. Foi por meio do padre e do trabalho social que é desenvolvido na paróquia e em outros pontos da cidade que ambos conseguiram um trabalho como jardineiro e uma casa para morar.
Enquanto não iniciam o novo trabalho, eles vão fazendo suas refeições gratuitamente por meio de uma ação que é oferecida pela igreja. “Já passamos bastante dificuldade. Até maus tratos, quando a gente era menor, a gente sofreu. Passar fome é não
Yara também foi beneficiada pelo trabalho do
“Tem vários núcleos aqui em São Paulo que fornecem alimentos para essas pessoas que estão em situação de rua e onde muita gente tem esse abrigo para poder comer, poder passar um tempo, ver questões de documentos. Em São Paulo tem bastante ajuda, principalmente aqui com o padre Julio, que é uma referência”, disse.
Já Thais, no período de maior dificuldade da pandemia, recebeu ajuda de amigos e de entidades que doavam cestas básicas, como a Ação da Cidadania. É por isso que seus filhos não passaram fome.
“Tive ajuda de ONGs, tive ajuda de amigos, de conhecidos, de família. Nos primeiros meses de pandemia, fiquei praticamente trancada dentro de casa até porque minhas meninas eram bebês na época. Fiquei a pandemia sem passar fome, mas na necessidade”, afirmou.
No momento em que o Brasil volta a
Conheça entidades que atuam no combate à fome
Ação da Cidadania
Rio de Janeiro – Ação da Cidadania lança campanha Natal sem Fome no Aterro do Flamengo- Tomaz Silva/Arquivo Agência Brasil
Uma das primeiras organizações a trabalhar com o combate à fome no país é a Ação da Cidadania, criada em 1993, a partir de um grande chamado feito
“A Ação da Cidadania foi, se não a primeira, uma das primeiras organizações da sociedade civil a tratar de maneira específica e profunda a questão da insegurança alimentar”, disse
“Muitas das legislações que existem
Conhecida principalmente pelas doações de donativos e por campanhas como o
“Nossos recursos vêm de doações de pessoas físicas, de empresas e de organizações nacionais e internacionais. O único recurso público que pode trafegar pela Ação da Cidadania é por lei de incentivo”, disse Afonso.
Rio de Janeiro – Ação da Cidadania lança campanha Natal sem Fome no Aterro do Flamengo – Tomaz Silva/Arquivo Agência Brasil
O trabalho desenvolvido pela organização, no entanto, não se resume a essas campanhas. “Hoje
No futuro, destacou Afonso, a organização pretende montar a maior rede de banco de alimentos de cozinha solidária do Brasil.
“A Ação da Cidadania, pela história que tem, conseguiu superar o desafio da sobrevivência.
“O nosso desafio e da sociedade como um todo é chegar a um modelo de captação de recursos e de atuação que garanta a independência da organização para que ela possa atuar em suas temáticas de forma independente e contínua. Nós, felizmente, conseguimos isso”, falou Afonso.
Coletivo Banquetaço
São Paulo (SP) – Ação do Coletivo Banquetaço em 27 de fevereiro na cidade de Mauá, na Grande São Paulo – Foto:
Em outubro de 2017, o então prefeito de São Paulo, João Doria, anunciou que pretendia incluir na merenda escolar a farinata – uma farinha feita com alimentos perto da validade que seriam descartados por produtores ou revendedores. À época, o governo alegou que a farinata era como um
O anúncio gerou polêmica e
“A farinata
“O
São Paulo (SP) – Ação do Coletivo Banquetaço em 27 de fevereiro na cidade de Mauá, na Grande São Paul – Foto: Coletivo Banquetaço/Divulgação
Para lutar contra a ideia da farinata, as pessoas que formam o coletivo decidiram que, em vez de oferecer ração às pessoas, ofereceriam um banquete com “comida, entretenimento e cultura”.
“A ideia do Banquetaço é que não seja oferecida apenas comida de qualidade, ou seja,
As ações promovidas pelo coletivo são pontuais, sem data definida. No mês passado, por exemplo, foi promovido um evento para celebrar o retorno do Consea.
“Quando ele [o ex-presidente Jair Bolsonaro] desfez o Consea, imediatamente as pessoas começaram a se mobilizar e foi apresentada a ideia de realizar um Banquetaço, no dia
Banquetaço
As ações também variam podendo ser um banquetaço ou um marmitaço, dependendo da ocasião. O que elas têm em comum é que sempre são gratuitas, articuladas por grupos no WhatsApp e realizadas por meio de doações.
“É tudo via WhatsApp e cada um no seu pedaço, uma centralização descentralizada: a gente está lá no WhatsApp, mas a gente sai falando com a colega do Piauí, ao mesmo tempo com a do Rio
“Organicamente, as coisas vão acontecendo. A gente inclusive fala que é aí que a mágica acontece porque é muita gente envolvida, buscando comida de todos os lados. Um busca um ingrediente aqui, o outro busca um relacionamento do outro lado, o outro busca a água. E aí a coisa rola. Mas sempre com a ideia de fazer uma intervenção pública para sensibilizar a sociedade”, disse Clau.
Paróquia São Miguel Arcanjo
São Paulo, 03/03/2023, Padre Júlio Lancellotti na Paróquia de São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste da capital. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Talvez a pessoa mais conhecida atualmente no Brasil pelo trabalho de combate à fome seja o padre Julio Lancellotti, que atua na Paróquia de São Miguel Arcanjo, na zona leste da capital paulista. Com mais de 40 anos de trabalho com a população em situação de rua, o padre é a figura de referência quando o assunto é resolver questões que afligem a população mais vulnerável: seja para encontrar um prato de comida, seja para ajudar a conseguir um emprego, para cobrar o Poder Público ou para oferecer um conforto espiritual.
Enquanto conversava com a reportagem da Agência Brasil, o padre foi interrompido numerosas vezes e, em nenhuma delas, deixou de atender quem precisava de ajuda. “Convivemos todos os dias com cerca de 500 a 600 pessoas”, disse.
“Partilhamos o pão que nós mesmos fazemos. Produzimos cerca de 3 mil pães por dia que são partilhados em vários pontos da cidade. Na Casa de Oração também temos o almoço: são entre 500 e 700 marmitex [oferecidos todos os dias]”, contou.
Tudo isso é oferecido pela igreja por meio de doações. “São tudo doações, mutirões, que a gente faz para juntar. A gente não tem nada oficial [de governos]”, destacou.
“A alimentação é um pretexto para conviver. O nosso objetivo é a convivência. A alimentação é uma necessidade objetiva, mas não somos distribuidores de comida. O alimento é uma forma de aproximação, uma forma de estar junto e perto e de, juntos, lutarmos para superar os problemas que atingem essa população.”
Problemas que, segundo o padre, só serão superados quando o Brasil conseguir distribuir a renda.
“A fome é um dos sintomas da desigualdade. A desigualdade produz fome, abandono, miséria, falta de moradia, falta de possibilidade de trabalho. Todas essas questões estão ligadas umas com as outras. Com o alimento, nós nos relacionamos. É uma forma de nos relacionarmos e de dizer para o outro que ele é importante para mim.”
Encontrar caminhos
São Paulo (SP),16/03/2023 – Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) acampam na calçada do Viaduto do Chá, em frente
Apesar da grande ajuda que oferecem às pessoas e
“A gente tem que se olhar não como uma entidade que substitua o
“O
Clau Gavioli
“Realmente acho que podemos resolver o problema da fome porque nosso problema é muito mais de estrutura, de
Para o padre
Fonte: Agência Brasil