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GERAL

‘Minha filha não queria ir pra escola com medo do pai me matar’: vítimas fazem relatos no Dia de Combate à Violência Contra a Mulher

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“Ela tinha medo de ir pro colégio estudar, com medo do pai me matar, ela ficava escondida atrás da parede, ela fingia que ia comprar um pão, bolo, ela já sabia, ela sentia. Uma vez no sofá ele segurou meu pescoço e ia enfiando uma tesoura, ela chegou e segurou o pai”.

Esse é um dos relatos da artesã Alexsandra Rodrigues, de 49 anos, que ao longo de três décadas foi vítima de diversas agressões do ex-companheiro. Ela contou que a filha mais velha, hoje com 30 anos, cresceu completamente traumatizada e tentou o suicídio diversas vezes por não suportar as violências sofridas pela mãe.

Como a maioria das vítimas, que por vezes acreditam que o companheiro vai mudar e parar com as agressões, Alexsandra também acreditou. Além disso, não teve praticamente nenhum apoio familiar para abandonar o relacionamento violento.

Somente em 2020 ela conseguiu coragem para sair de casa, registrar um boletim de ocorrência e pedir uma medida protetiva contra o ex. Foi a filha, que presenciou os 30 anos de violência, a única testemunha a favor da mãe. Alexasandra ainda briga na Justiça pela posse da casa que hoje está com o ex e pela condenação do agressor ndiciado por ameaça, injúria e lesão corporal.

Naquele ano, ela foi uma das mais de 5 mil mulheres piauienses que buscaram uma delegacia especializada para fazer uma denúncia de violência doméstica.

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Neste dia 25 de novembro, data que marca o Dia de Combate à Violência Contra a Mulher, o g1 conversou com vítimas e profissionais que atuam no acolhimento a essas mulheres.

A data foi escolhida em homenagem às irmãs Mirabal (Pátria, Minerva e Maria Teresa), dominicanas que ficaram conhecidas como Las Mariposas e se opuseram à ditadura de Rafael Leónidas Trujillo sendo assassinadas em 25 de novembro de 1960.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

Quase 20 denúncias por dia em 2021

Em 2021, o Piauí registrou uma média de 17 casos de violência doméstica por dia no estado. Em seis anos, o número total de registros de boletins de ocorrência desse tipo de crime cresceu 60% no Piauí, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do Piauí.

g1 solicitou dados à SSP e obteve registros de casos de feminicídio, mortes de mulheres sem motivação por gênero e registro de boletins de ocorrência de forma geral. Para fins de comparação, serão utilizados os dados dos seis primeiros meses dos anos de 2015 a 2021, já que este último ainda não encerrou.

No primeiro ano do levantamento, 2015, foram registrados 1982 boletins de janeiro a junho. Em 2021, o número aumentou 60%, com 3177 denúncias. Os registros diários saltaram de 11 para mais de 17.

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Os dados acabam confirmando a hipótese de subnotificação no ano de 2020, levantada pela gerente de risco da SSP, delegada Eugênia Villa. Segundo ela, o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 e a crise no transporte público da capital podem ter dificultado as denúncias presenciais.

Com a redução dos casos nas delegacias em 2020, as denúncias pelo aplicativo Salve Maria cresceram 45% de janeiro a setembro, em relação a 2019

Além disso, 2020 foi o ano com o maior número de feminicídios no estado desde que a lei do feminicídio foi sancionada, em 2015. Foram 31 no total, sendo 6 na capital e 25 no interior.

FEMINICÍDIOS NO PIAUÍ

  • 2015 – 26
  • 2016 – 30
  • 2017 – 27
  • 2018 – 26
  • 2019 – 29
  • 2020 – 31
  • 2021- 14 (até junho)

Dados da SSP revelam ainda que a maioria das vítimas de feminicídio tinha de 20 a 30 anos, 84% eram pretas ou pardas e 40% foram mortas dentro de casa. Cerca de 40% foram mortas a tiros e 34% com uso de arma branca.

Violências vão muito além das agressões

Agressões físicas, psicológicas, violência sexual, patrimonial, gaslighting… Durante os 30 anos de casamento, Alexandra foi vítima das mais diversas formas de abuso.

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Ela disse ao g1 que o ex fazia coisas como: jogar água e farinha pela casa, para ela ser obrigada a limpar. Batia nas panelas próximo ao ouvido dela, para deixá-la alterada emocionalmente. Escondia objetos pessoais e passava semanas para devolver, deixando que ela acreditasse que havia realmente esquecido onde havia colocado.

“Logo na primeira gravidez da minha filha, eu grávida e ele me jogava nas paredes e dizia que ia dar um murro na minha barriga e mataria eu e a criança. Depois ele colocava o travesseiro no meu rosto e quando a minha filha já estava um pouquinho maior ela empurrava com as mãos, minha filha pequena puxava, puxava os pés do pai até que ele me deixava de mão”, contou ela.

“Uma vez ele me deu um murro de mão fechada tão forte… A dor foi tão forte que dentro da minha boca ficou tudo roxo, a dor foi tão grande que os miolos da minha cabeça parece que ia estourar, a minha cabeça ficou rodando”, descreveu.

Quando ele a obrigava a ter relações sexuais com ele, forçava para que ela dissesse que seu corpo pertencia a ele.

“Quando ele ia trabalhar, fazia chamada de vídeo umas 10 vezes por dia pra saber se eu estava do jeito que ele deixou, com a mesma roupa sem maquiagem sem nada, e nessa chamada de vídeo ele sempre mostrava uma faca do lado dele. Quando ele estava em casa, queria que me vestisse como ele quisesse, eu tinha nojo quando ele queria ter relações.. Ele falava: ‘diga, esse corpo é meu’. E eu dizia que era meu. Mas ele queria que eu dissesse”, relatou.

O Centro de Referência da Mulher em Situação de Violência Esperança Garcia oferece em Teresina o suporte gratuito para todas as mulheres acima de 18 anos que buscam romper o ciclo da violência doméstica. São oferecidos serviços de apoio psicológico, assistência social e assistência jurídica.

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Segundo a assistente social e coordenadora do Centro, Roberta Araújo, desde de 2015 mais de 800 mulheres já buscaram algum tipo de atendimento no local e muitas delas identificam que foram vitimas de mais de um tipo de violência (física, sexual, psicológica, patrimonial).https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

“Desde de 2015 que o Centro faz esse atendimento. Não é um local de denúncia mas de amparo e suporte para que as mulheres saibam identificar a violência e a denuncie. Nós não fazemos distinção do público, qualquer mulher que precise de ajuda e que se encaixe no perfil de 18 a 59 anos, more em Teresina, independente da classe social, nós vamos acolher”, disse a coordenadora.

Incêndio causado pelo ex-companheiro destruiu a casa da vítima, em Teresina — Foto: Arquivo pessoal

Incêndio causado pelo ex-companheiro destruiu a casa da vítima, em Teresina — Foto: Arquivo pessoal

Samara Melão, além das agressões fisicas e ameças, teve a casa queimada pelo ex-companheiro em novembro de 2019 após uma discussão em que ela pediu a separação. Como vingança, ele ateou fogo à casa onde moravam com o filho, que na época tinha 8 meses, e a vendedora perdeu tudo.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

Após três anos do ocorrido, Samara ainda sofre com os impactos da violência vivida ao longo dos dois e oito meses de relacionamento.

“Moro com meus pais. A casa ainda está sendo reformada, mas não pretendo voltar a morar lá porque meu filho, que na época tinha 8 meses e sofreu com o episódio nos meus braços, de alguma forma lembra o que aconteceu e fala que a casa dele foi queimada”, lamentou a vendedora.

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E esta não foi a primeira vez que o ex companheiro incendiou um imóvel após uma tentativa de término. Na primeira vez, ele queimou uma kitnet onde os dois moravam.

Vendedora inicia reconstrução de casa que foi incendiada pelo ex-companheiro, em Teresina

Vendedora inicia reconstrução de casa que foi incendiada pelo ex-companheiro, em Teresinahttps://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

Após a repercussão nacional e internacional do caso, Samara doações para reconstruir a casa, que é de sua mãe e foi cedida para que o casal morasse, e atualmente está em reforma, mas as marcas deixadas pelo antigo relacionamento fizeram com que ela decidisse não morar mais no local.

“O filho dele tem um trauma com casa. A casa da minha mãe fica em frente à casa que queimou e o neném diz: ‘olha mãe, a nossa casa queimada’. Ele sonha com casa pegando fogo. Vou devolver para minha mãe. Não consigo nem entrar lá, quanto mais morar”, contou Samara.

Transtornos psicológicos graves afetam até 80% das vítimas

Elizane Sousa, hoje com 40 anos, sequer consegue falar sobre o que sofreu durante metade da vida: os 20 anos de casamento com o marido agressor na cidade de Altos, a 40 km de Teresina. A irmã dela, Eliane Sousa, foi que contou ao g1 como o relacionamento violento desestruturou toda a família.

O rompimento definitivo do casal só aconteceu com a prisão do ex-companheiro, indiciado por estupro, ameaça e tortura contra ela. Sob constante ameaça de morte e de que sua família fosse assassinada, ela tinha medo de denunciar.

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Suspeito de estupro, ameaça e tortura contra a própria mulher é preso no Piauí — Foto: Divulgação

Suspeito de estupro, ameaça e tortura contra a própria mulher é preso no Piauí — Foto: Divulgaçãohttps://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

De acordo com a polícia, entre os dias 12 e 15 de dezembro 2019, o homem chegou a filmar as torturas físicas e as violências sexuais e psicológicos às quais submeteu Elizane nos três dias em que foi mantida em cárcere privado. Ela conseguiu fugir, ele foi preso em flagrante e foi solto no dia seguinte. Cerca de 20 dias depois, foi preso preventivamente e permanece até agora.

Contudo, somente cerca de 2 anos depois do fim do ciclo de violência é que Elizane começa a tentar retomar a vida. Hoje, ela está longe dos familiares e da rotina que conhecia, porque mesmo com o ex-marido preso, ela tem medo de voltar a viver na cidade.

“Ela não vive mais, teve que ir embora, passa por problemas psicológicos, faz tratamento. Meus pais vivem sob efeito de medicação, foi algo que mesmo após dois anos, mesmo ele preso, fica uma dor muito grande. Vivemos longe da minha irmã, ela não tem mais a vida que ela tinha, perdeu a autoestima, perdeu a vontade de viver, a família toda paga as consequências de tudo isso. Ela tem medo de sair, de atender o telefone, falar com as pessoas, tem medo até quando alguém liga pra ela”, lamentou a irmã.

Tanandra Calaça, psicóloga do Centro de Referência da Mulher em Situação de Violência Esperança Garcia, contou ao g1 que até 80% das mulheres que sofrem violência doméstica apresentam algum grau depressivo. Além disso, cerca de 70% apresentam ansiedade e 30% precisam de acompanhmento médico e tratamento medicamentoso.

É o caso de Samara, que perdeu a casa após o ex tocar fogo no imóvel, ele não ficou preso e ela continua recebendo ameaças do ex, que tenta na Justiça tirar a guarda do filho do casal, hoje com menos de três anos. Diante da situação, o abalo psicológico demandou tratamento médico.

“Ele não passou nem 12 horas preso. Foi preso no dia 2 de novembro em flagrante às 22h e solto às 8h da manhã do dia seguinte. Hoje, faço tratamento com psiquiatra e psicólogo. Passo noites sem dormir porque não consigo. Tenho medo de ele levar meu filho embora em uma visita”, relatou Samara.

No caso de Alexandra, vítima de gaslighting (manipulação psicológica onde o autor tenta criar na vítima uma dúvida até acerca da própria sanidade mental), uma das consequências foi justamente falhas na memória e percepção da realidade. Ela contou que o ex escondia pertences dela e passava dias deixando que ela achasse que havia perdido os objetos.

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“A tortura psicológica efetou minha mente. Às vezes guardo uma coisa e eu não lembro onde coloquei, ele mexeu muito com isso na minha mente. E minha filha cresceu com trauma, ela nem gosta que eu fale das coisas, porque machuca ela, é como ela viver o passado. Eu passei tudo isso, mas ela passou comigo”, relatou.

A família de Iarla Lima, vítima de feminicídio em 2017 na Zona Leste de Teresina, sofreu abalos psicológicos profundos após a morte da jovem estudante de arquitetura. Segundo a mãe e a irmã de Iarla, o pai da jovem morreu vítima de coma alcoólico dois anos após a morte da filha.

“Depois que minha irmã morreu meu pai passou a beber todos os dias e foi a óbito por coma alcoólico. Ele nem dormia mais no quarto, deitava no sofá da sala, onde tinha uma foto dela que ele ficava olhando. Eu tentava mostrar para a gente ter força para continuar, mas ele desistiu de viver”, contou em depoimento.

‘Mulheres recorrem ao judiciário para estar vivas’

É assim que juíza Keylla Ranyere, Coordenadora da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, avalia a situação da mulher vítima de violência. Segundo ela, que apenas um debate amplo com toda a sociedade pode evitar que as mulheres continuem sendo vítimas de violência por parte de seus parceiros.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

“Essa violência contra a mulher é fruto de uma cultura que ainda carregamos na nossa sociedade. Essa violência tem aumentado e para que ela seja dissolvida e outros casos não cheguem até o Poder Judiciário, é necessário que a sociedade, de uma forma integral, possa participar, debater a temática. Para que a gente possa construir uma sociedade mais igual e que as mulheres não precisem recorrer ao Poder Judiciário para estarem vivas e desfrutar do direito de ir e vir”, declarou.

Integrante do Fórum de Mulheres Piauiense e do movimento Gênero, Mulher, Desenvolvimento e Ação para Cidadania (Gemdac), Tatiana Cardoso destacou a importância da busca por direitos, principalmente durante a pandemia.

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“Antes da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, as mulheres não tinham nenhum mecanismo que pudesse coibir esse tipo de crime, eram penas alternativas. A lei veio a endurecer a penalidade por essas agressões. A pandemia, infelizmente, foi um agravante, um potencializador, porque vários casais ficaram juntos e a mulher não podia sair de casa”, destacou.

Para ela, o machismo na sociedade brasileira é estrutural e a realidade tem que ser mudada desde cedo, começando pela educação das crianças.

“Nenhum ser humano, nenhum menino nasce machista, ele adquire pela sociedade. Precisamos descontruir esse machismo estrutural através de palestras, rodas de conversas. É um trabalho preventivo para que a sociedade não tenha que passar por essa situação de homem machucando e matando mulheres, pela condição delas serem mulheres. É preciso defender a não-banalização da violência, porque um menino vê o pai agredindo a mãe e acha natural e não é”, disse

Foi só depois que acionou a polícia e, judicialmente, conseguiu uma medida protetiva, que

Foi só depois que acionou a polícia e, judicialmente, conseguiu uma medida protetiva, que

Foi só depois que acionou a polícia e, judicialmente, conseguiu uma medida protetiva, que Alexsandra conseguiu começar uma nova vida. Ela deixa um recado às mulheres, para que busquem ajuda e não permaneçam acreditando que o agressor vai muda de comportamento.

“E digo a outras mulheres: eles não mudam de jeito nenhum, eles só prometem, nunca mudam… Não tem dinheiro que pague a paz, a liberdade de viver. Viver com um homem nesses, não é vida… Um prato de comida, você consegue, nem que não coma todo dia, mas é melhor que viver ao lado de um homem desses. Hoje eu posso dizer que sou feliz mesmo com as dificuldades que eu tenho, porque tenho paz e liberdade. Falo com quem eu quiser, saio pra onde eu quiser. Até instagram hoje eu tenho, que ele não deixava”, disse.

Como denunciar

Há várias formas de buscar ajuda e denunciar um caso de violência doméstica, sendo você a vítima ou não.

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É possível acionar a Polícia Militar, no momento da ocorrência, pelo número 190. Além disso, qualquer denúncia de violência pode ser relatada pelo 180. Online, a vítima ou testemunha pode acionar a polícia pelo botão do pânico no app Salve Maria. É possível buscar uma delegacia da mulher e fazer a denúncia, assim a delegada pode solicitar uma medida protetiva.

Fonte: G1 PI

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