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JAICÓS | Trajetória dos repentistas e a luta pelo reconhecimento e valorização cultural

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Quando tudo começou, o Criador pensou bem
Só Ele pode dizer de onde a poesia vem
E que quando ele fez o mundo
Fez a poesia também (Sebastião Dias)

Palavra cantada, cultura, poesia, são as palavras que melhor definem o repente. Derivado do cordel, o repente é uma das principais identidades culturais do Nordeste e mais que isso, é um estilo de vida dos que escolhem e são escolhidos por essa arte.

O jaicoense Genivaldo Sousa, de 41 anos, é repentista, poeta e radialista. Ele apresenta o programa ‘A hora da Poesia’ de segunda à quinta das 17h:30 às 18h, na rádio Clube FM. Genivaldo conta que vive profissionalmente do repente há duas décadas. “Há 25 anos sou repentista, comecei em 94. A gente começa sempre como amador, mas faz uns 20 anos que eu vivo profissionalmente disso. Para mim o repente é tudo, porque eu nunca fiz outra coisa para garantir o meu meio de vida. Eu vivo de cantoria e do repente”, conta.

Foi ouvindo outros artistas que Genivaldo teve contato com o repente. Segundo ele, ser repentista é um dom que é aprimorado com o tempo. “A gente já nasce com esse dom, mas teve alguns cantadores que escutei pelo rádio. Na época, morava no interior e só ouvia pelo rádio, não tinha aproximação. Os primeiros que ouvi aqui em Jaicós foram Zé Reis e Barra Azul”, disse.

Outro que se rendeu aos encantos do repente foi o poeta repentista Luís Costa, de 50 anos. Natural de Marcolândia, Luís reside em Jaicós há 20 anos e é repentista há 29. Seu primeiro contato com o repente foi quando começou a trabalhar na Rádio Canta Galo, na década de 90, em Jaicós. “Eu comecei a cantar aqui em 90, mas ainda morando lá. Eu fazia o programa da Canta Galo das 18h às 19h no sábado e domingo e quando terminava eu ia para as cantorias. Na época eu encontrei Zé Reis, Miguel Rocha e Chiquinho Ferreira”, relatou.

Semelhante a Genivaldo, foi através do rádio que Luís conheceu o repente “No tempo que eu comecei havia muitos poetas fazendo programas de viola no rádio e quando tinha cantoria eu ia assistir. Comecei a tomar gosto até que um dia disse ‘vou ser cantador’. Comprei uma viola, me dediquei a tocar e cantar e “tô” nessa profissão até hoje e não pretendo deixar”, falou.

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O repentista Valdenor Batista, de 48 anos, possui 28 anos de profissão e explica que a poesia vem de berço, mas que se inspirou em alguns poetas no início de sua trajetória com o repente. “A poesia vem de berço, é um dom que Deus dá a gente. A gente se inspirou em alguns poetas, eu mesmo cresci inspirado no poeta Moacir Laurentino. Todo poeta vem da origem do nordestino Caboclo do Mato, e eu era um desses. Eu nasci, me criei e trabalhei na roça, me tornei repentista pelo dom de Deus, mas sempre ouvia aquelas gravações quando era criança e dizia para o meu pai que ainda ia cantar com o cantador do rádio. Aí ele dizia ‘ É sonhar alto demais’ e dava gaitada”, relatou.

História do repente

O repente é a forma oral do cordel. Ele surgiu no Nordeste, mais precisamente na Serra do Teixeira, no Estado da Paraíba, e se desenvolveu com força em Pernambuco e também no Rio Grande Norte, Ceará e em todo o Nordeste.

Os principais responsáveis por trazer o repente para o sertão nordestino foram os mouros. Eles vieram como prestadores de serviço dos donatários, sesmeiros, curraleiros, que povoaram os sertões, ou pequenos comerciantes, os mascates. Então, essa literatura é totalmente de caráter popular, foi somente na segunda metade do século 20 que a academia reconheceu o repente como sabedoria popular, influenciada por intelectuais como Paulo Freire, Darci Ribeiro, Ariano Suassuna e outros.

A cultura do repente influenciou toda uma geração de compositores brasileiros, com presença na música de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença, Ednardo, Zé Ramalho, Elomar, Geraldo Azevedo e outros muitos.

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Conhecido também como poesia cantada, o repente é feito no momento em que estão sendo feitas as apresentações, por isso essa denominação vinda da expressão “de repente”, que significa momentaneamente, que é tido como surpresa para os que presenciam tais ações. “É muito espontâneo, de uma pessoa ou objeto, a gente faz um verso. A gente tem essa facilidade de fazer isso na hora”, explica Genivaldo.

O repente é intitulado cantoria quando é utilizada a viola nas exposições de repentistas. Os cantadores acumulam vários estilos de verso rimado, como por exemplo, sextilha (que ainda persiste); sete linhas ou sete pés; moirão; moirão de sete pés; moirão trocado; moirão que você cai; moirão voltado; décima; martelo agalopado; galope à beira-mar; parcela; quadrões; quadrão trocado; gabinete; toada alagoana; meia quadra; gemedeira; ligeira (também retirada da prática dos cantadores atuais).

Segundo Luís Costa, o poeta deve ser minucioso no processo criativo do repente e se aprimorar na língua-portuguesa. “Nossa rima é diferente, os poetas têm que ser perfeccionistas na íntegra, rima, métrica, oração e gramática. Nos festivais, se tiver erro de português no repente a gente já perde ponto. Eu estudei muito pouco, parei na quarta série, mas a gente vai estudando, se aprimorando, lendo dicionário e consultando a internet”, disse.

O repentista Luís tem um diferencial, em sua jornada, ele encarou a perda gradativa de sua visão. Hoje, enxerga parcialmente, mas isso não lhe impede de continuar, seu dom fala mais alto.

Apesar de enxergar apenas vultos, em entrevista ao Cidades na Net, Luís afirmou que essa condição não afeta o seu desempenho com a viola, pelo contrário, sua concentração e sensibilidade musical aumentaram ainda mais. “Eu enxerguei muito bem até os 40 anos, de lá pra cá a visão foi diminuindo, mas nada baixa minha autoestima e nem atrapalha, porque não é mental. Acho que foi depois disso que melhorei ainda mais a concentração”, falou.

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A importância do repente como manifestação cultural

Em tempos de industrialização da cultura, uma das maiores preocupações dos repentistas está em repassar o repente para as futuras gerações. Para Genivaldo, o repente faz parte da história e cultura de um povo e por isso deve ser valorizado e preservado para não deixar de existir.

“É muito importante porque é uma das identidades culturais do Nordeste. Aqui em Jaicós a gente tem trabalhado muito para não deixar essa cultura morrer. Eu me lembro que quando comecei a cantar era bem difícil cantar aqui dentro da cidade, era só na zona rural, aqui na cidade a viola não tinha espaço. Aquilo me preocupava muito e aí a gente foi trabalhando com muito respeito com a arte, e graças a Deus mudou. Hoje você já canta aqui na cidade e já tem quem lhe escute, tem as pessoas que organizam e promovem o repente”, explanou.

Para Genivaldo, o apoio do poder público é essencial para o reconhecimento e valorização da cultura do repente. “Nós temos dificuldades de fazer alguma coisa porque falta alguém que nos apoie e valorize. A gente tem o apoio dos nossos fãs e das pessoas que nos acompanham, mas do poder público, a dificuldade é grande pra gente conseguir alguma coisa”, ressaltou.

Além da falta de apoio público, os repentistas ainda enfrentam dificuldades de serem valorizados por parte da população civil. De acordo com Luís Costa, quem mais se interessa pelo repente são as pessoas da zona rural. “O repente precisa ser mais visto, não só na nossa cidade, mas também em nível do estado. Nós temos a valorização da população, mas dos gestores não temos. Já me apresentei na Universidade Estadual e Federal, ajudando os professores, mas infelizmente quando precisamos deles, não vem nenhum. Nosso público é o pessoal do interior”, confessou.

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Casa do Cantador

A Associação dos Violeiros e Poetas Populares do Piauí, chamada Casa do Cantador, é a única instituição de apoio a violeiros e poetas no Piauí. Fundado em 1977 na capital, o local também serve de Centro de Pesquisa do tema, sendo de grande importância e apoio para este trabalho realizado sobre o repente no estado.

O repente como profissão

É através de apresentações, festivais e cantorias que os repentistas recebem cachês, troféus e medalhas. Luís conta que já participou de vários festivais e conheceu grandes nomes de poetas repentistas “Eu participei ao todo, de 22 festivais e ganhei 5 vezes em primeiro lugar. Já concorri com grandes cantadores como Ivanildo Vila Nova, Raimundo Caetano e Rogério Meneses. Já tive o prazer de concorrer com eles no mesmo palco”, discorre.

A rotina de trabalho dos repentistas acontece mais nos finais de semana, em algumas ocasiões, eles até viajam para outros lugares e se apresentam em festivais. Com relação às composições, Genivaldo conta que possui dois CDs com músicas autorais. “Eu tenho várias canções compostas. Tenho 2 CDs de 10 faixas cada, só de canções minhas”, contou.

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O desejo é que o repente não caia no esquecimento

O desejo dos repentistas é que o repente não seja esquecido no tempo, mas passado de geração em geração. “A gente espera que com o passar de tempo e com muita dedicação, a gente consiga atrair a juventude. Tem mudado, no começo não tinha de jeito nenhum, hoje já se vê alguns jovens assistindo e aplaudindo a gente”.

Luís acredita que é possível despertar o interesse dos jovens. De acordo com o repentista, em outros estados já se vê a nova geração trabalhando com o repente. “Vai bem aqui no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco que você vê vários jovens no repente. Hoje tem poetisa de 12 anos vivendo da viola. Hoje a gente tem em torno de 20 a 49 poetisas que participam de festivais e vivem da viola como nós”, finalizou.

Apesar das dificuldades e falta de apoio, os poetas Genivaldo Sousa, Luís Costa e Valdenor Batista e tantos outros que se encontraram no repente, seguem lutando pela valorização, preservação e reconhecimento dessa arte.

Por Tainara Sousa | Cidades na Net

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