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Com quase 300 expressões criadas pela população local, Dicionário da Língua de Sinais de Várzea Queimada é lançado em Jaicós

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Na noite desta terça-feira (05), foi realizada no Povoado Várzea Queimada, zona rural de Jaicós, a cerimônia oficial de lançamento da obra “CENA: Dicionário Visual da Língua de Sinais de Várzea Queimada”, primeiro dicionário do mundo entre duas línguas de sinais.

O livro é resultado de um projeto de pesquisa intitulado “Léxico e gramática da CENA: a língua dos surdos da Várzea Queimada”, desenvolvido pelo professor e pesquisador Dr. Anderson Almeida da Silva, com a participação de uma equipe de pesquisadores.

O evento de lançamento do dicionário, realizado com o apoio da Prefeitura Municipal de Jaicós, aconteceu na praça da igreja, no centro do povoado, reunindo pessoas da comunidade e da sede do município.

Também prestigiaram o evento o gestor da Secretaria Estadual para Inclusão da Pessoa com Deficiência (Seid), Mauro Eduardo, o asssesor de comunicação da Prefeitura de Jaicós, Edvan Luiz, que representou o prefeito Neném de Ediite, a secretária municipal de Cultura, Alessandra Leal e o vereador João Bosco, o Bosquinho.

A programação contou com uma apresentação da dança “Landê”, realizada por mulheres do povoado, além da exibição de vídeos com relatos do coordenador do projeto sobre o dicionário; com registros feitos durante o período de pesquisa e imersão na comunidade; além de mensagens de autores que não puderam estar presentes no evento.

No evento, foi realizada também a entrega dos dicionários para a comunidade surda de Várzea Queimada. Nessa primeira tiragem, com o apoio do Governo do Estado do Piauí, foram impressas 500 unidades do Dicionário Cena.

O secretário estadual da Pessoa com Deficiência, Mauro Eduardo, enalteceu o trabalho desenvolvido no povoado e disse que o intuito de dar mais visibilidade à comunidade.
“Está sendo uma experiência magnífica conhecer o povoado Várzea Queimada. A gente chega aqui e é muito bem recebido, acolhido. E aqui tem o diferencial, várias famílias com pessoas surdas e hoje estamos lançando esse dicionário que tem a própria língua da comunidade, mas também outras línguas. Isso mostra a importância desse trabalho desenvolvido aqui, mostra a comunidade não só para o Brasil, mas para o mundo. A gente fica muito feliz em estar participando desse momento hoje aqui nessa comunidade que já é referência por esse trabalho feito por pesquisadores e pela quantidade de pessoas surdas. Queremos dar mais visibilidade a essa comunidade. Pesquisadores de outros países já estiveram aqui e eles levam para os seus países que a comunidade tem sua própria língua, que as pessoas convivem de forma inclusiva”.

O secretário ainda destacou que o Governo do Estado irá desenvolver no povoado o projeto Mulheres Mil, que deve ser iniciado em janeiro de 2024. “Vamos lançar o projeto para que a gente possa estar qualificando as mulheres surdas da comunidade, as ouvintes, para que elas possam se aperfeiçoar ainda mais” concluiu.

Marcilene Barbosa, uma das lideranças no povoado, destacou a relevância do projeto e agradeceu. “Esse é um momento muito especial, importante para a comunidade, principalmente para a comunidade surda, por estar realizando hoje aqui o lançamento do Dicionário Cena. Isso faz com que eles sintam-se importantes, em terem reconhecidos os seus gestos, como eram chamados, que depois passou para a Cena, e agora a gente vê que a Cena é uma linguagem própria da comunidade surda da Várzea Queimada. Muito obrigada a Anderson pelos seis anos de convívio, a Bruna, a Telma e a todos que aqui estiverem. De forma pequena, também pude contribuir com esse processo. Meu sentimento hoje é de gratidão, me sinto muito feliz por fazer parte da comunidade surda da Várzea Queimada”.

Ela também conclamou os moradores a estarem unidos na luta pelos direitos da comunidade surda de Várzea Queimada. “Também chamo atenção para o fato de que, não é porque os surdos moram aqui que todos fazem parte da mesma comunidade. Fazemos parte da mesma comunidade quando nós lutamos pelo mesmo objetivo. E é isso que quero alertar, para que cada um dos moradores tenham esse interesse de estar se integrando à comunidade surda da Várzea Queimada, defendendo os direitos deles, é assim que nós teremos uma inclusão total na comunidade em todos os sentidos”.

O jornalista Edvan Luiz, disse que o projeto é marcante para a comunidade e que é uma honra para a gestão municipal apoiá-lo. “É uma alegria a Prefeitura de Jaicós ser parceira em um projeto como esse. Outras pessoas já fizeram trabalhos aqui na comunidade, mas o Dicionário Cena, veio realmente para marcar essa cultura aqui do povoado, agora registrada para sempre. Esse dicionário eu levarei para a UESPI em Teresina, para trabalhar no meu plano de curso. E em nome do prefeito Neném de Edite e da secretária Alessandra Leal, dizer que a prefeitura será sempre parceira para apoiar a cultura. Várzea Queimada está de parabéns mais uma vez”.

Sobre a pesquisa e experiências vividas

Celina Barbosa de Carvalho, de 37 anos de idade, é uma das integrantes da comunidade surda de Várzea Queimada. Ela destacou sua alegria pelo projeto realizado no povoado.
“Para mim foi uma satisfação imensa, eu gostei muito de fazer parte do projeto. Aqui na comunidade tem algumas pessoas que sabem duas línguas, a Libras e a Cena. Vi o dicionário e achei muito bonito, muito legal e acho que vai ajudar a todos. A Cena é uma língua que facilita muito a comunicação entre nós. Estou muito feliz pelo momento da festa de hoje para o lançamento do dicionário”.

Douglas Macedo, de 31 anos, graduado em Letras\Libras e especialista em Linguística da Libras, foi um dos pesquisadores da equipe. Ele, que também é surdo, veio de Teresina para participar do projeto no povoado.

“Vim participar desse grupo de pesquisa do dicionário e a minha primeira experiência foi muito marcante. Hoje estou muito feliz, porque eu recebi o convite do professor Anderson e eu tinha a concepção de que só existia a Libras como língua de sinais e que a outra forma de comunicação era gestual. Eu não sabia que existia outras comunidades que desenvolveram uma outra língua de sinais. Então, a participação nesse trabalho fez com que eu me interessasse em investigar essa língua e eu vi que é importante sim a gente valorizar essas línguas de sinais e me sinto muito feliz em participar desse projeto. Eu não conhecia os sinais da Cena, então foi uma aprendizagem que aconteceu de forma lenta, através da interação com os outros surdos”.

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O pesquisador ainda destacou que o trabalho é de suma importância. “Estou feliz e me sinto muito emocionado, porque tivemos um trabalho muito grande em organizar todos os dados do dicionário, muitas reuniões, vídeo chamadas, alguns problemas que em trabalhos em grupos às vezes acontecem. Comecei a participar desse projeto em 2019 e eu perseverei, mesmo sabendo do trabalho que seria organizar esse dicionário. Vi que é um trabalho muitíssimo importante e é muito importante também divulgar isso a nível nacional para que as pessoas reconheçam também que existe outra língua de sinais, que é a Cena. Tenho consciência de que não é o fim. O dicionário é a finalização de um projeto e outras pesquisas podem estar acontecendo aqui. Meu sentimento estando aqui é de muita felicidade, de estar encontrando os surdos sinalizando em Cena, outros que sinalizam em Libras. Isso vai acrescentar muito no meu lado afetivo, é uma experiência muito importante”.

O professor, pesquisador e linguista, Dr. Anderson Almeida da Silva, que é de Recife-PE, foi o coordenador do projeto. Ele contou que a ideia da pesquisa surgiu em 2013, após ele ter tido conhecimento de uma tese publicada pelo antropólogo Everton Pereira, que viveu no povoado e escreveu sobre a vivência dos surdos na comunidade. Na época, Anderson residia em Parnaíba-PI, onde atuava como professor na Universidade Federal do Delta do Parnaíba.

Após formada a equipe de pesquisadores, a primeira visita ao povoado foi realizada no de 2017. Foram mais de 5 anos de estudos, período em que foram registradas quase 300 expressões utilizadas pela comunidade.

“Aqui a gente encontrou uma língua nativa, que foi criada pela própria comunidade e que não teve influência, por muitos anos, da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Ela é uma língua autóctone, que foi criada isoladamente, e isso é muito interessante, pois não acontece mais no mundo com as línguas orais. Só nessas micro comunidades de pessoas surdas que estão isoladas, é que surgem essas novas línguas. Foi uma experiência fantástica. O primeiro surdo daqui que a gente tem conhecimento nasceu em 1932. Então, há mais de 90 anos os surdos daqui estavam isoladas e junto com os ouvintes, criaram essa língua, sem nenhuma instrução. Do ponto de vista científico é algo muito relevante você criar uma língua sem influência externa. E foi uma imersão muito bacana, aqui aprendi muitas coisas, não só sobre linguagem, mas sobre os seres humanos, esse espírito cooperativo que existe aqui, essa irmandade. As lições da Várzea Queimada extrapolam a questão de aprender sobre uma língua”.

O professor disse que espera que o dicionário contribua para que Cena seja perpetuada na memória da comunidade. “Espero que ela se perpetue, fique viva, mas talvez essa língua desapareça daqui alguns anos, pois não tem mais surdos nascendo em Várzea Queimada. A última surda que nasceu tem 16 anos, então ela provavelmente vai ser a última usuária surda dessa língua. O dicionário é justamente pra isso, para manter viva a memória dessa língua e se um dia não tiver mais surdos aqui, que as gerações vindouras mantenham a memória de que essa língua existiu nesse solo, que ela foi criada pelos antepassados deles. E mesmo que não tenha mais surdos aqui, as outras gerações podem lembrar dos sinais que as pessoas faziam aqui. Isso é o mais maravilhoso, a gente poder deixar esse presente para essa memória da comunidade”.

Dr. Anderson Almeida explicou que o dicionário é composto pela Cena, LIBRAS, Português e Inglês. “Quando a gente chegou aqui, algumas pessoas diziam que o que os surdos usavam não era uma língua, mas apenas gestos aleatórios. Então, foi muito importante a gente colocar outras línguas no dicionário, para os surdos perceberem que a língua deles é igual as outras línguas. É maravilhoso eles poderem ver que não importa em qual idioma, mas o conceito que eles usam aqui de uma forma, em outras línguas é expresso de outra forma. Foi muito bom a gente fazer o dicionário envolvendo várias línguas, para eles verem que a língua deles é traduzível”.

Os pesquisador ainda informou que cada surdo da comunidade recebeu cinco dicionários. Pessoas da comunidade que se envolveram no projeto e a escola local também receberão unidades do dicionário, além do envio da obra para bibliotecas de universidades do Brasil. O intuito é também lançar um ebook.


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