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Niéde Guidon | A pesquisadora que colocou a região de São Raimundo Nonato no mapa-múndi da arqueologia

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Considerada uma das pesquisadoras mais influentes e polêmicas do Brasil, a paulista Niéde Guidon, 85 anos, solteira, filha de pai francês e mãe com origens indígenas, nascida no interior de São Paulo, na pequena cidade de Jaú, tem dedicado grande parte de sua vida profissional as descobertas no interior do Piauí. Na verdade, ela colocou a região de São Raimundo Nonato, no mapa-múndi da arqueologia e nos principais circuitos de ecoturismo do país.

Antes de Guidon chegar ao sertão nordestino, a ciência dava como certa que a chegada do homem ao continente americano tinha ocorrido há cerca de 15 mil anos através do estreito de Bering, espaço gelado entre a Sibéria e o Alasca. Naquela época, parte do mar tinha ficado retido em grandes geleiras, o que permitiu a formação de uma espécie de ponte natural entre os dois continentes, facilitando o fluxo de animais e humanos.

No entanto, na década de 1990, as descobertas no Piauí apresentaram datas muito mais antigas, com vestígios de até 50 mil anos. Isso mudou todas as hipóteses sobre a ocupação desse pedaço da América. Ou seja, o Brasil já era habitado por grupos humanos desde muito antes do que se pensava até então. Nessa conversa com o Jornal Meio Norte, ela faz um pequeno balanço dos trabalhos no Piauí, fala das grandes conquistas realizadas ao longo dessas décadas e prevê um futuro de desenvolvimento sustentável para esse pedaço do semiárido, mais acostumado com as constantes secas – que tanto fragilizam sua economia e a sobrevivência de sua população, do que com levas e levas de cientistas e turistas que procuram a Caatinga para conhecer melhor os trabalhos e o legado dessa pesquisadora que muda, a cada ação, o futuro da ciência e dos moradores do Piauí.

Como a pesquisadora descobriu a Serra da Capivara, no Piauí?

Na década de 1960, eu trabalhava na Universidade de São Paulo, comissionada no Museu do Ipiranga, deslocada para lá pelo Departamento de História Natural e, em 1963, decidi fazer uma exposição fotográfica sobre as pinturas rupestres descobertas na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Foi quando uma pessoa me procurou para dizer que nas proximidades da sua cidade existiam serras com pinturas muito parecidas. (Hoje, sabe-se que tratava-se do ex-prefeito de Petrolina (PE), Luiz Augusto Carvalho (1930-2016), que tinha fotografado as pinturas das serras da Capivara e Confusões, entre os anos de 1958 e 1962 e foi até São Paulo em busca de pesquisadores para mostrar suas descobertas no Piauí). Em 1973, depois de participar de uma etapa da Missão Arqueológica Franco-Brasileira de Minas Gerais, consegui chegar pela primeira vez no Piauí, no antigo povoado de Vargem Grande, um distrito do município de São Raimundo Nonato. Nessa primeira viagem, já pude visitar alguns sítios com pinturas rupestres que me marcaram pela qualidade daquelas figuras, elas não se pareciam com nada descoberto até então. Não tive dúvidas: era necessário pesquisar profundamente a origem dessas manifestações gráficas e os povos responsáveis por sua realização.

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Como você planejou a estrutura de primeiro mundo que existe hoje no Parque Nacional da Serra da Capivara?

Logo que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) fez uma doação de 1,5 milhões de dólares para a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) fazer a estruturação do parque nacional, no começo da década de 1990, eu fui visitar uma série de sítios declarados Patrimônios da Humanidade na Austrália, Europa e nos Estados Unidos para ver como eram preparados para visitação. Foi com base nessas reservas arqueológicas e naturais que planejamos tudo o que foi feito na Serra da Capivara, sempre adaptando para a realidade local e contando com a ajuda de uma grande equipe de pesquisadores envolvidos com os trabalhos na área.

Quais as principais dificuldades enfrentadas nesses 50 anos de pesquisas no Piauí?

Importante dizer que nunca faltou apoio para as nossas pesquisas aqui na Serra da Capivara e na região chamada Área Arqueológica de São Raimundo Nonato, que engloba também a Serra das Confusões. A França sempre nos deu um forte apoio, tanto financeiro como viabilizando a participação de pesquisadores associados às nossas pesquisas. O Governo do Brasil também vem financiando ininterruptamente nossos estudos através do CNPq, Capes, Finep, etc. Nossa maior dificuldade sempre foi com a manutenção do Parque Nacional da Serra da Capivara, que foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO e a responsabilidade de manter a integridade da região é da FUMDHAM. Dessa forma, sempre lutamos para manter um nível de excelência na administração da reserva, envolvendo as populações locais nos trabalhos de pesquisa, estruturação e conservação. Para isso, assinamos um contrato de cogestão com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), visando trabalhar em conjunto para manter a Serra da Capivara com a sua biodiversidade equilibrada e com os trabalhos permanentes. Ocorre que o governo brasileiro não se preocupa muito com seus acervos culturais e naturais, e a falta de verbas sempre atrapalhou o desenvolvimento dos nossos programas. Para contornar isso, aumentamos o leque de apoios com a participação de outros países e governos além de empresas da iniciativa privada e também órgãos do próprio governo brasileiro. Como não temos dotação orçamentária assegurada, todo ano precisamos fazer uma série de projetos para manter o parque. O problema é que essa captação de recursos nunca é suficiente para garantir a integridade da Serra da Capivara e, além disso, o ICMBio alega não dispor de recursos para manter o nível de excelência que implantamos no parque, já que eles são responsáveis por mais de 340 unidades de conservação pelo país afora, muitas delas reservas apenas no papel, pois não recebem verbas nem tem programas de conservação efetivos.

Como definir o Museu da Natureza, inaugurado recentemente?

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O novo museu surgiu da necessidade de um novo espaço para abrigar todos os achados que realizamos nos últimos anos. O Museu do Homem Americano começou a ficar pequeno pois as pesquisas se ampliaram nas últimas décadas e não tínhamos mais espaço para as peças mais significativas. Como nossas pesquisas sempre foram multidisciplinares com a participação de arqueólogos, botânicos, paleontólogos, geólogos, biólogos, etc surgiu a ideia do Museu da Natureza, que tem como foco dividir os acervos. O Museu do Homem Americano ficaria apenas com os vestígios arqueológicos, ou seja, os vestígios humanos e o novo Museu da Natureza abriga todos os fósseis e descobertas nas áreas da biologia, botânica, paleontologia, etc.  A Serra da Capivara é um lugar único no mundo. Meu objetivo sempre foi pensando em que tudo fique pronto para que as pesquisas continuem e para que essa maravilha que é a Serra da Capivara tenha condições de atrair cada vez mais visitantes, turistas que possam garantir o desenvolvimento

Qual o legado que Niéde Guidon deixa para as próximas gerações?

Tudo o que foi feito nesses 40 anos de pesquisas agora têm dois espaços estruturados para o público que deseja visitar essa região do Brasil – a parte humana no Museu do Homem Americano em São Raimundo Nonato e a parte referente ao meio ambiente no Museu da Natureza, em Coronel José Dias. Nossa equipe sempre teve como meta estruturar toda a zona de entorno do Parque Nacional da Serra da Capivara, pois para garantir a preservação desse tesouro cultural e natural, temos que garantir um caminho para o desenvolvimento sustentável. Sem as garantias mínimas de qualidade de vida não será possível deixar para as futuras gerações toda essa riqueza que os povos que nos precederam deixaram nas rochas e grutas da Capivara. Estou com 85 anos e já bastante cansada dessa luta em busca de apoio e recursos para manter o parque. Agora, com a inauguração do Museu da Natureza, acredito que a região fica com uma estrutura que pode ajudar muito no incremento do turismo, na socialização do conhecimento científico e na propagação de ideias inovadoras que certamente vão contribuir para que o futuro seja melhor que o presente. Deixamos a cidade de São Raimundo Nonato com um aeroporto de alto nível, que infelizmente não está funcionando para voos comerciais, mas que certamente deve ser um instrumento de forte impacto na economia local quando efetivamente grupos e grupos de visitantes comecem a chegar ao Piauí para conhecer a Caatinga selvagem e os vestígios mais antigos de ocupação das Américas, pelo menos que se tem conhecimento atualmente.

Texto e foto por André Pessoa

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